Economia & Mercado

Clima derruba produção de vinho na América do Sul, mas Brasil segue na contramão; saiba como

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Expertise brasileira em rápidas adaptações de novas uvas pode favorecer mercado do Brasil  |   Bnews - Divulgação Divulgação / Unsplash
Verônica Macedo

por Verônica Macedo

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Publicado em 03/05/2024, às 18h00



A vitivinicultura, uma das atividades mais sensíveis à mudança climática, está colhendo os frutos do aquecimento global, com impactos que vão do campo à taça, mostra estudo da consultoria Mirow & Co.

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Já há retração na produção de vinho e movimentos migratórios por parte dos produtores, deslocados pelo calor excessivo que vem inviabilizando regiões tão tradicionais como o Mediterrâneo.

O Brasil, que nos últimos anos desenvolveu expertise em rápidas adaptações de novas variedades de uvas, tem oportunidade de posicionar o vinho nacional em uma reconfiguração do mercado mundial, avaliado em US$ 315 bilhões. 

Em todo o mundo, a produção de vinho em 2023 foi a mais baixa desde 1960, segundo a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), devido ao estresse climático e a doenças fúngicas generalizadas. Foram produzidos 237 milhões de hectolitros, 10% a menos que em 2022. A remoção de vinhas nas principais regiões produtoras seguiu pelo terceiro ano consecutivo, resultando em uma superfície plantada 0,5% menor que no ano anterior. 

O Brasil foi na contramão dos produtores sul-americanos mais tradicionais, em 2023. Enquanto Argentina e Chile reduziram suas áreas plantadas em 1,1% e 5,6%, e apresentaram quedas de 23% e 11,4% na fabricação da bebida, respectivamente, os brasileiros expandiram a superfície de vinhas pelo terceiro ano seguido, com 1,5% a mais, e ampliaram a produção em 12,1% sobre 2022, volume 31,4% acima da média dos últimos cinco anos.

No Chile, incêndios florestais, secas e inundações comprometeram o setor. Na Argentina, geadas e tempestades de granizo levaram ao volume mais baixo desde 1957, segundo a OIV. 

"Um possível motivo para o Brasil se contrapor, diante desse fenômeno, é uma maior capacidade dos produtores brasileiros de se adaptarem a condições climáticas mais hostis à produção de vinhos finos, especialmente se comparado com países de clima mediterrâneo", afirma Fernando Fabbris, associado e líder da prática de mudança climática e sustentabilidade na Mirow & Co. 

O estudo da Mirow & Co. mostra que o aquecimento global deve afetar o agronegócio como um todo, mas os efeitos são ainda mais profundos em cultivos muito sensíveis a variações climáticas, como vinho, café e azeite.

“A cultura da uva e do vinho é considerada o canário nas antigas minas de carvão, que sentia os gases venenosos antes dos mineiros e alertava para a retirada dos trabalhadores”, comenta Fabbris. 

Os termômetros mais elevados, a escassez hídrica ou o excesso de chuvas, como ocorreu no Sul do Brasil no ano passado, onde se encontra a maior parte da produção nacional, tanto colocam as safras em risco quanto alteram as características das uvas e, por sequela, as dos vinhos. 

Terroir sob risco

Não é apenas a safra, em quantidade, que fica exposta ao risco. Cada evento extremo altera as propriedades das uvas e, consequentemente, as da bebida, resultando em sabores e acidez diferentes.

“Os eventos climáticos extremos dificultam principalmente a produção de vinhos especiais, como aqueles que requerem mais maturação, processo que evidencia eventuais desequilíbrios”, comenta Fabbris.

“O que se vê agora na Argentina e Chile é semelhante ao que ocorreu nas também tradicionais regiões produtoras da Califórnia (EUA), em 2020, e na França, em 2021”, acrescenta. 

Regiões produtoras da Califórnia já tinham sido atingidas por incêndios em 2008 e 2017, mas em 2020, a destruição causada pelo Glass Fire foi ainda mais longa. O incêndio queimou o cultivo de Cabernet Sauvignon do Napa Valley por 23 dias, atingindo cerca de 30 vinícolas, muitas delas exportadoras de produtos premium.

Apenas 20% daquela safra foi engarrafada. Além dos vinhedos destruídos, houve prejuízo no vinho produzido, cujo gosto foi contaminado pela fumaça. O problema é que esses sabores só foram perceptíveis após a fermentação e, em alguns casos, após o envelhecimento. 

Muitas vinícolas do Napa Valley passaram a realizar colheitas mais cedo, reduzindo a exposição ao risco de incêndio, resultando em vinhos mais frescos, ácidos e com menos teor alcoólico, e também começaram a utilizar outras variedades de uvas, como Malbec, Tempranillo e Touriga, originárias de áreas mais áridas e menos vulneráveis à fumaça.

Ou seja: pode ser que a Cabernet Sauvignon, tão cultivada no Napa Valley, não seja mais utilizada na região nos próximos anos. 

No ano de 2021, a França passou por fenômenos meteorológicos díspares, desde o calor extremo à geada precoce, bem como chuvas intensas. Os eventos alteraram os períodos de desenvolvimento das plantas, sua capacidade de extrair água do solo e o crescimento das uvas, que também queimaram sob o sol. 

“Não houve tempo necessário para o desenvolvimento dos aromas. O aumento da temperatura também diminuiu a acidez do vinho e aumentou o teor alcoólico”. 

No Vale do Rhône, as alterações no microclima estão levando a vinhos mais doces e com maior teor alcoólico, menos apreciados pelo consumidor que, nos últimos anos, tem buscado vinhos mais leves, de maior acidez e menor teor alcoólico. Com uma das menores colheitas desde os anos 1950, o prejuízo chegou a US$ 2 milhões em vendas. 

“Os produtores franceses estão tendo que mudar os tipos de uvas e testar a resistência delas aos eventos mais extremos. A influente região de Bordeaux, em que a tradição das uvas está intimamente ligada à qualidade, certificações de origem e reputação da bebida, já começou a introduzir novas variedades”, destaca. 

Impacto nos preços

O efeito desses testes vai demorar a chegar às prateleiras. As adaptações de uvas e terroirs levam de 15 a 20 anos. 

Enquanto isso, no campo de todas as regiões produtoras são cada vez mais frequentes os recursos de proteção das parreiras, como tendas e argila borrifada, que funciona como uma espécie de filtro solar. 

Outro fator significativo é o deslocamento de eixos produtores, em busca de maiores altitudes, como as regiões de clima temperado do Norte e Sul dos hemisférios. Na Europa, o movimento migratório ruma à Inglaterra e aos países nórdicos, que devem ter uma produção maior em dez anos. Na América do Sul, a Cordilheira dos Andes e a Patagônia são o principal destino. 

“Há uma intensa mudança de estratégia em relação à comercialização de terras. Apesar da mudança para novas geografias, até o fim do século haverá uma redução de 50% da superfície cultivável, porque as novas áreas não rendem tanto”, complementa. 

Todo esse movimento terá mais impacto sobre oferta e preço. “O reflexo no mercado é que o vinho premium ficará ainda mais caro, atingindo valores estratosféricos, e o de média qualidade terá ainda mais retração na oferta, com um choque maior entre preço e qualidade”, diz o associado da Mirow & Co. 

O vinho brasileiro, que nos últimos cinco anos deu um salto de qualidade e ganhou mais destaque, vem de uma acentuada curva de aprendizado que pode favorecê-lo no novo cenário. “Com o choque de produção global pressionando os vinhos de maior qualidade, o vinho brasileiro pode se tornar uma alternativa”, avalia Fabbris. 

Segundo a consultoria, o redesenho do mercado vai exigir cada vez mais tecnologia, inteligência e novos métodos de qualidade na produção, uma vez que os eventos climáticos tornam as técnicas preditivas ainda mais sensíveis, ampliando os riscos. 

Enólogos, meteorologistas e engenheiros agrônomos serão ainda mais demandados no novo quadro de produções mais flexíveis e possíveis quebras de safra. “Será fundamental ter uma ótima gestão financeira e comercial, em meio a um mercado mais difícil de operar e com mais riscos sobre o preço. O produtor terá de buscar um salto de qualidade, pois a nova realidade vai separar os produtores convencionais dos mais sofisticados, provando sua resiliência”, pontua.

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